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Metodologia

Metodologia

Continuidade conceitual e Ruptura metodológica

Sebastião Elias Milani (UFG)

1. Do equilíbrio ao desequilíbrio: continuidade e ruptura

Antes de dizer o que significa continuidade e ruptura nesse texto, é preciso dizer que se trata de um ensaio em que se explora a aplicação desses princípios nos exercícios de síntese de Historiografia Linguística. Principalmente, tratam-se dos estudos sobre a linguagem, portanto, é uma exploração dos conceitos e métodos desenvolvidos nessa área dos estudos científicos e de suas manifestações em texto. Ciência muito antiga, os estudos da linguagem acompanham o ser humano desde os tempos mais remotos da escrita, a filosofia da antiguidade clássica, tanto na Grécia como na Índia, teve obras inteiras dedicadas ao exercício do entendimento do funcionamento da comunicação verbal. Desde esses estudos até a modernidade, nunca se duvidou que a comunicação humana dependesse da integração do indivíduo em um grupo, de tal forma que o grupo seja responsável pela parte estável e durável e o indivíduo pela parte dinâmica e momentânea da comunicação.

Em todo esse equilíbrio e desequilíbrio, grupo e indivíduo, estão a atualização e a permanência daquele sistema de comunicação, ou seja, a língua como o veículo de integração entre cada indivíduo e o grupo. Assim, há sempre no interior de qualquer sistema, em específico nos sistemas de comunicação verbal, uma parte que é permanente, ou continuidade, e uma parte que é passageira, ou ruptura. Nos estudos científicos ou em tudo que se faz, a ruptura responde pelos avanços do conhecimento e pelas inovações, porque são precisamente os novos pontos de vista, ou métodos de abordagem, do objeto estudado. Os conceitos não variam, são sempre retomados como foram aprendidos, mas todo sujeito-falante individualmente tem uma concepção metodológica, para qualquer objeto da sociedade, sempre diferente de todos os outros sujeitos, por isso tal conceito certamente será transfigurado e renovado em um conceito diferenciado individualmente.

 

2. Indivíduo e sociedade

Todo indivíduo é único em todos os aspectos físico-inatos, o que o faz ser único também nos aspectos sociais-aprendidos e historiográficos. Quando um ser humano nasce, já tem as possibilidades do corpo físico orgânico: cor da pele, cor dos cabelos, timbre da voz, desenho das digitais, cores das íris, sexo etc., todos os aspectos inatos. Esses aspectos são todos únicos, nunca se repetiriam juntos em dois indivíduos, de tal forma que qualquer um desses aspectos pode ser utilizado para reconhecer um indivíduo entre todos do planeta. De fato, a existência de todos os seres humanos é sempre única, jamais se repete em dois indivíduos, até se poderia fazer repetir os aspectos sociais, mas os aspectos psíquicos fariam com que esses indivíduos se tornassem diferentes. Deixados na sociedade, os indivíduos fazem escolhas relativas à sociedade que intensificam as diferenças dele para com todos os outros indivíduos do planeta. Isso numa escala infinita de espaço e de tempo, quanto mais distantes os indivíduos mais diferenças, mas jamais iguais e jamais totalmente diferentes.

A sociedade, por sua vez, prima pela organização, isso significa que ela não pode diferenciar os indivíduos, para ela, quanto mais iguais todos forem, mais perfeita ela será. Isso quer dizer que tudo o que é social tende a ser coletivo, despersonalizado, neutro, estável, regrado, previsível, estruturado, conhecido. Tende a ter aspectos espaciais e temporais com pouca diferenciação. Tende, quando ocorre, a respeitar a uma estrutura ainda maior ou mais abrangente. Desse modo, todas as vezes que se compara aspectos pelo prisma da sociedade, faz-se por um aspecto igualador, despersonalizante e neutralizador. A sociedade e suas marcas geram um equilíbrio que permite a convivência, de tal forma que explicar sociedade como regrada e estruturada é inócuo, porque sem esses aspectos classificatórios não existe sociedade. Assim sendo, a sociedade, diferentemente do indivíduo, não tem aspectos inatos, e pode ser reduzida a um único princípio, o da opressão pela categorização (ordem versus desordem).

Comparativamente, a individualidade é um princípio de libertação, não pode ser categorizada, porque a categorização é pura opressão. Diante das situações sociais, os indivíduos são obrigados a escolher, e terão de fazê-lo a partir de suas condições físico-inata e sociais-aprendidas. Como indivíduo de uma dada sociedade, mantendo-se como integrante dela, claramente aceitou suas categorizações, estando, portanto, oprimido. Ainda assim, mesmo estando formalmente institucionalizado, poderá produzir arranjos estruturais, a partir de sua competência individual historiograficamente constituída, que o colocam como diferente de todos os outros participantes da mesma categoria. O nível de sua rebeldia contra essa categorização vai gerar uma força opressora de igual intensidade. Tal embate entre esses opostos, que se completam necessariamente, é de extrema importância para que a sociedade sobreviva, porque ela é opressora, mas permite e precisa de ajustes constantes.

Afirma-se aqui que a diferenciação entre indivíduos foi construída daquilo que é historiograficamente subjetivo. Tendo que escolher seu caminho em todas as situações, o indivíduo deve fazê-lo por princípios que o atendam, regularmente faz isso, escolhe a submissão ou a rebeldia, o individualismo ou a abnegação, branco ou escuro, amargo ou meio amargo etc. Orienta-se por vontades ou acordos. Faz acontecer algo porque tem um sonho, cuja a realidade social o categoriza como sem acesso a esse objeto de desejo. Diante de tantas circunstâncias e possibilidades, opta por desistir ou persistir. Qualquer uma dessas escolhas gerarão consequências ou mudanças, porque as regras da sociedade duram enquanto são praticadas, ficam mais fortes ou mais fracas a depender de quantos sujeitos a praticam. Enfim, as escolhas sempre são orientadas por um jogo entre os valores interiores do indivíduo, algo essencial, e os valores exteriores a ele, algo de aparência, sempre numa mistura dos dois, mais para um ou para outro. 

Para explicar de outro modo, cada corpo fisiológico tem, historiograficamente, um conjunto único de experiências. O que é diferente em cada um, é aquilo que é historiograficamente individual, colocado sob a imensa massa historiográfica social. Cada indivíduo tem uma história de vida que não se iguala a mais ninguém. Os elementos sociais, assumidos pelo sujeito, sempre através da língua, sofrem a ação da recepção de seus filtros psíquicos e físicos. Logo, o que é assumido pelo sujeito, enquanto indivíduo, é um conjunto dos valores socioculturais dos que existem na sociedade. Esse conjunto corresponde à medida da distância, espacial, temporal, intelectual, estética etc., em que o indivíduo estiver da ideologia representada. Isso não seria outra coisa que quais e como a memória registrou as sensações, portanto, é o conhecimento, o que faz funcionar o pensamento. Cada memória registra as informações numa lógica ponderadamente única, associando sensações segundo a ordem típica daquela entidade psíquica e física. Para reforçar o que já está dito acima, deve ficar claro que o indivíduo é sempre parte integrante da sociedade, é a parte menor dela ou sujeito, qualquer ato seu será sempre uma redefinição do que já estava dado, logo, sua individualidade ou subjetividade somente existe como parte da sociedade, nas diferenças que possa ter em relação aos outros indivíduos.

A sociedade não muda, são os indivíduos que mudam e modificam a sociedade, assim a sociedade é sempre continuidade e o indivíduo é sempre ruptura. Há uma direta correlação entre indivíduo, ruptura e método e entre sociedade, continuidade e conceituação, entre também libertação e opressão e entre discurso e texto/língua, respectivamente. Os conceitos sociais nunca mudam por si mesmos, a sociedade é sempre estável e prima pela resistência e conservação. Por si mesma, ela não sobrevive, porque a vida é o princípio da transformação, por isso a sociedade funciona, obviamente, como um ser sem vida, tudo que é social depende da existência da vida humana para continuar existindo. A sociedade se constitui de instituições, que podem ser concretas ou abstratas, de ordem econômica, legal, arquitetônica, política etc., e linguística. Como instituições seus conceitos, científicos ou culturais, são sempre linguísticos. Como conceitos, são conhecimento e são sociais, porque estão dispostos e acessíveis, enquanto língua, a qualquer sujeito daquela sociedade. Logo, os conceitos são estáveis, primam pela continuidade, são como a sociedade, nunca mudam e são sempre opressores.

Os indivíduos estão sempre tentando superar os limites que lhes são impostos pela sociedade. Nesse esforço, por meio dos arranjos metodológicos que lhes caracterizam, agem dando vida à sociedade e criando novas disposições de conceitos, que permitem a atualização da sociedade. De fato, a sociedade é uma garantia de sobrevivência ou de vida mais segura para os indivíduos que, então, geralmente estão voluntariamente oprimidos em sociedade. O indivíduo somente opõe sua libertação à opressão social naqueles conceitos que atacam diretamente seu bem estar ou ameaçam a existência da própria sociedade. Então, os princípios de libertação do indivíduo e o princípio de opressão da sociedade, misturados, resultam num princípio mais importante e que justifica a existência humana e a resistência das estruturas institucionais da sociedade, que é o princípio da conservação: estável, duradouro e vivo.

 

3. Dos sentidos ao conhecimento

Os sentidos são os órgãos do corpo animal, que permitem a todos se relacionarem entre si e perceberem os fenômenos e as coisas do mundo. São inatos, quando um está defeituoso, o indivíduo tende a ficar isolado do grupo. A depender do grau de deficiência e de qual desses sentidos, o indivíduo pode, dependendo da sociedade, ficar impedido de se relacionar com outros de sua espécie. O ser humano aprendeu a usar esses órgãos para obter informações, através deles consegue preencher o espaço psíquico da memória.

As sensações derivam dos estímulos materiais que os sentidos recebem. Estão associadas à criação de significados desde os textos de Platão. O processo de captar as sensações depende sempre da qualidade dos órgãos dos sentidos, do treinamento que o sentido recebeu para os valores daquela sensação e também do grau de importância que determinada sensação tem para o pensamento que a recebe. Elas formam pares com o pensamento e a memória das experiências e assim tornam-se memória e conhecimento para o cidadão.

Como os sentidos estão sempre funcionando, o indivíduo está sempre sendo atingido por muitos estímulos e, então, está sempre tendo muitas sensações, de luz, de sons, de cheiros e táteis. Os estímulos são sempre materiais, como matéria não podem penetrar no corpo humano, por isso, o que se chama de sensação na literatura das ciências humanas, são as impressões psíquicas que os estímulos causam nos órgãos dos sentidos. Tudo que for sensação ou impressão psíquica é transmitida ao cérebro, órgão do pensamento e da memória: interpretada, associada a outras experiências e estruturada em linguagem.

O corpo humano inteiro é o órgão do sentido tátil. É por isso que o tato é o principal e o mais ativo dos sentidos, até mesmo os animais mais inferiores o têm. O tato é com certeza o sentido primeiro da evolução das espécies, os outros são prolongamentos de suas funções e, normalmente, podem ser excluídos, quando não podem ser utilizados, devido a condições inadequadas do ambiente. Pode-se dizer que os órgãos dos sentidos fazem os animais seres muito maiores fisicamente do que são de fato organicamente, e quanto mais apurados forem esses órgãos, maiores espacialmente o animal se torna.

O pensamento é uma das funções do órgão cérebro e, comprovadamente, somente o animal humano o tem. As impressões psíquicas chegam ao cérebro e se transformam numa massa amorfa de sensações,  elas assim não servem para nada. Os animais se utilizam dessa massa amorfa para reagir de uma forma ou de outra, como em condições adversas à sobrevivência, então, não se precisa do pensamento para perceber quentura, corte, cheiros, mas se precisa dele para dar valor a essas sensações. Em funcionamento, o pensamento atribui forma às sensações, como formas, podem ser organizadas em ideias, que são hierarquizadas das experiências sentidas e armazenadas na memória como linguagem.

Quanto mais experiência, mais a estrutura do pensamento fica complexa, e o ser humano cada vez se torna menos vulnerável a sensações, chegando a antecipar a ocorrência delas, podendo até evitar o evento que as causaria. A ordem da complexificação da estrutura transforma-a num modelo, que pode ser repetido e melhorado. Esse modelo é a linguagem, que é fruto da ação do pensamento estimulado pelas sensações. Desse modo, um animal que não tenha um dos sentidos, não poderá formar estrutura das sensações captáveis por ele e, então, não poderá estruturar uma linguagem a partir daquele tipo de sensações. Para cada sentido, os seres humanos, animal que pensa, organiza uma linguagem, através da qual interpreta novas sensações.

O pensamento para armazenar as sensações na memória precisa que tenham um formato, ou seja, precisa transformá-las em objetos, que são as ideias. Assim sendo, as ideias são objetos para o pensamento. Nesse formato de ideias são o conhecimento pronto para ser embalado para ser externado numa substância de expressão. O pensamento, através da faculdade de linguagem, estrutura ideias, que, para serem conhecidas por outros indivíduos, são materializadas numa substância que possa ser percebida por um dos órgãos dos sentidos. As ideias no pensamento têm uma forma perfeita ou idealizada, porque é inimaginável um pensamento que não seja perfeito, porém, para ser materializada a ideia depende do conhecimento e da habilidade do indivíduo na arrumação dos materiais da substância; em geral, o resultado é muito inferior ao perfeito.

As ideias são dispostas na memória, organizadas de acordo com as experiências do indivíduo, associadas entre si na ordem em que foram sentidas. Pode-se aprender as ideias pelo jeito natural, transformando sensação em estrutura de linguagem através do pensamento, mas, na maioria das vezes, ou quase sempre, ou sempre, dependendo do teórico, são adquiridas já prontas, embaladas nas palavras. Dessa forma, aprendendo as palavras, aprendem-se ideias, e memorizar palavras é memorizar ideias. Do mesmo modo, outros teóricos afirmam que, enquanto a ideia não ganhar a forma de uma palavra, não poderá ser memorizada e nem externada, então, não poderá ser ensinada e nem aprendida. A memória é substancialmente palavras que representam ideias já prontas. As palavras ao serem usadas emprestam sua representação para compor um plano ou contexto de ideias.

Um sentimento ou um entendimento permanece no interior de uma comunidade como sensação. Muitos indivíduos sentem seus estímulos, mas nenhum consegue dar-lhes forma de linguagem, porque nenhum desses pensamentos consegue compor todas as partes da sensação. Em dado momento, um desses pensamentos realiza a estrutura da ideia e, assim, é capaz de por nome nela. A palavra que será o nome dessa sensação, apresentará a forma das palavras por analogia às ideias que existam como memória do pensamento que a definiu. Uma vez tendo isso acontecido, esse sentimento ou entendimento, que virou ideia estruturada em linguagem pelo pensamento, poderá ser materializada na palavra, que é seu nome, e ser ensinada e aprendida.

A partir desse ponto, a aquisição dessa sensação se dará sempre a partir dessa palavra. Uma vez que exista a sensação, e a palavra é aprendida, todo o processo se renovou. Na maioria das vezes, aprende-se a palavra sem ter sentido a sensação, desse modo a velocidade de aquisição de ideias é muito maior, porque libera o pensamento de estruturar as ideias uma a uma e formatá-las em palavras. De fato, todas as vezes que se precisa representar uma nova sensação, procura-se na língua uma palavra já pronta. Não é incomum entre os teóricos verificar isso como preguiça, vício ou economia de esforço. Em geral, essa atividade de transformar sensação em palavra está sempre acontecendo no seio da coletividade, tem sempre alguém trazendo para o seio da estrutura linguística uma nova ideia formatada em palavra, facilitando para todos, por estar o trabalho dividido.

As ideias são os objetos para o pensamento e as palavras (signos para Saussure) os objetos para a língua. A língua é a estrutura que o pensamento concretizou como forma básica para memorizar as sensações. O que os indivíduos memorizam são as palavras, arrumadas pela estrutura da língua. As palavras levam para dentro do pensamento as informações recolhidas do meio social e, uma vez estando na memória, passam a ser um conhecimento, porque sempre podem ser utilizadas para analisar uma nova sensação. O conhecimento está na sociedade, na forma do mundo como conhecível e na forma da língua como conhecido. Tudo que está armazenado em palavras, na língua portanto, foi tudo o que ao longo da existência da humanidade/sociedade foi conceituado e tem sido persistentemente revitalizado e continuado. A língua, como estrutura de linguagem, é onde o conhecimento permanece, quanto mais a língua é aprendida mais conhecimento é adquirido. De fato, sem uma estrutura não é possível adquirir qualquer tipo de conhecimento.

 

4. Da língua ao discurso

A língua é a representação da sociedade, sem uma representação nela nada existe, porque, se não existir na língua, não existirá para o ser humano. Na língua estão juntadas em fórmulas gerais todas as possibilidades de manifestação de um mesmo conceito, ou seja, uma palavra contem muitas acepções de um mesmo conceito. Cada vez que a palavra for usada será de um modo particular, e o conceito será particularizado, pode-se repetir os sons, mas jamais as impressões psíquicas. A língua é uma estrutura e um modelo. De fato, age como um sistema do qual nenhum dos indivíduos da coletividade pode escapar, impõe-se como organização para todas as coisas e valores, como é a representação da sociedade, é opressora sobre os indivíduos.

texto-discurso é sempre único e particular do sujeito-indivíduo que o faz. Os indivíduos não podem escapar da sociedade, mas têm dentro de si todos os recursos para lutar contra a opressão. Não podem escapar da língua, tão pouco, mas podem usá-la de um modo particularizado, adaptando-a a seus interesses. No texto, as ideias são sempre um modo particular das ideias existentes na língua. São sempre os mesmos conceitos, através das palavras da língua, mas apresentados pela ordem aprendida pelo pensamento que os usa. Pelo texto, o indivíduo reage contra a opressão. Ao mesmo tempo que recupera parte de sua liberdade, oferece à língua e à sociedade uma atualização de sua estrutura. O texto representa o indivíduo-sujeito e seu desejo de liberdade, tanto quanto a língua representa a sociedade e seu caráter de inflexibilidade.

O conhecimento está para a língua, do mesmo modo que a criatividade está para o discurso. A sensação que virou pensamento e ideia, palavra da língua, é o conhecimento na memória. Como já foi dito, todo conhecimento é social e está na língua. O indivíduo que memoriza a língua e o conhecimento, é capaz de arranjar a ordem desse conhecimento em seus atos subjetivos de texto. Como parte da coletividade, não pode se libertar dela, porque ele não existiria sem ela, mas tem sua criatividade, sua capacidade de remontar a mesma estrutura na ordem de sua vontade e de seu entendimento.

O conhecimento são os conceitos sociais ideados pelos pensamentos passados pela língua. São eternos, a criatividade individual pode arranjar a ordem ou acrescentar acessórios, mas enquanto existir aquela sociedade, os conceitos serão sempre transmitidos, e serão transmitidos através do tempo e do espaço pela língua. Logo, os conceitos de uma arte, ou de uma ciência, ou de uma instituição, não mudam, são sempre repetidos em uma ordem diferente, marcada pela individualidade historiográfica linguística do texto. A individualidade historiográfica linguística faz com que o ser humano tenha um ponto de vista único sobre o mundo, as coisas, as instituições etc., que resulta em um método irrepetível de fazer textos. Esse método apresenta, com os conceitos a que se liga, a mesma relação que o discurso tem com a língua e que a criatividade tem com o conhecimento.

Assim sendo, a sobrevivência da sociedade depende da manutenção da organização que se constitui pela arrumação inflexível e opressora e que se reproduz pelos conceitos que são sempre continuados pela transmissão da língua. O ser humano se mantém como ser diferente dos outros na sociedade pela criatividade com que utiliza os conceitos que recebeu dela pelo aprendizado da língua institucionalizada. Sua criatividade é fruto de seu corpo orgânico inato e de suas experiências, que resultam no método como seu pensamento estrutura as ideias. Logo, enquanto os conceitos são sempre continuidade para a sociedade e opressão para o indivíduo, o método é sempre a forma de ruptura e o mecanismo de libertação do indivíduo, juntas, continuidade e ruptura, mantém atualizados e em funcionamento todos os mecanismos de sobrevivência.

 

5. Princípios do fazer síntese Historiográfica-Linguística

Na análise de uma obra, deve-se perceber o que dos conceitos está ligado ao coletivo, movimento, ideias gerais, conhecimento, e o que são redefinições a partir do método adotado naquele texto ou obra. Obviamente, que o primeiro passo é proceder uma síntese dos conceitos do tema. Em princípio, quando se conhece o objeto-tema com clareza, a síntese é relativamente simples, porque os conceitos geralmente estão na superfície discursiva. Os conceitos que permanecem no subentendido ou no pressuposto, pertencem a outro nível de análise, relacionado com as etapas de verificação de fontes, marcadas e não marcadas, e de contexto, espacial e temporal. A síntese é o modo de constituir o objeto de estudo.

Quando o objeto é uma época ou um conceito ao longo de um período, é preciso fazer uso de arbitrações e escolher os pontos que são mais relevantes em termos de continuidade. Pontos nesse caso são modelos desse conceito que se destacaram, podem ser livros, ou movimentos sociais, grupos políticos e culturais etc., a depender da área da pesquisa. Deve-se escolher uma manifestação do conceito como básica e percorrer as manifestações anteriores, que seriam as fontes ou as intermediárias. A cada período uma série de intervenções metodológicas transformaram o que era básico em uma estrutura mais e menos rebuscada. É preciso afastar essas intervenções metodológicas e elaborar uma síntese demonstrando o conceito que seja continuidade na sociedade.

Se o objeto for um indivíduo, seus traços e sua produção humana: artística, cultural ou científica, deve-se atentar para as fontes metodológicas de sua subjetividade que, inevitavelmente, estão vinculadas ao espaço e tempo de sua existência. Uma biografia orientada para suas atuações na área de investigação deve ser construída, relacionando com o conjunto de toda a produção. Acidentes e relacionamentos de todos os tipos conduzem para uma atualização dos conceitos que particularizam sua obra e seu método. Importante salientar que todo indivíduo cultural é um ser humano de carne e osso, logo, foi orientado por um "professor" ou vários "professores", que pertenceram a muitas instituições, em uma época, cujos valores dominantes precisam ser revelados.

 

I) As etapas do trabalho historiográfico-linguístico quando o objeto for uma obra/livro:

1º estudar a obra mapeando os conceitos atualizados.

2º relacionar os conceitos atualizados aos conceitos subentendidos e pressupostos.

3º relacionar todos os conceitos ao espaço-tempo do autor.

4º relacionar todos os conceitos às fontes marcadas, da obra, e depois às não marcadas, do autor.

5º relatar o método estilizado na obra.

6º relacionar o método estilizado com o Movimento no qual a obra se encaixa.

7º comparar o método com as fontes da obra e do autor.

8º marcar a particularidade ou traço diferenciador de ruptura do método estilizado.

9º demonstrar como o indivíduo ou autor chegou a produzir historiograficamente a metalíngua que particulariza aquela obra.

10º Demonstrar as definições conceituais, a partir da ruptura metodológica, a continuidade e a atualização.

 

      1. As etapas do trabalho historiográfico-linguístico quando o objeto for um conceito:

1º estabelecer uma fonte básica, que permita ter uma definição para esse conceito.

2º demonstrar sua relação com o período em que esse conceito inicial foi veiculado, para que se possa definir o espírito de época.

3º descrever o espírito de época e suas implicações para a ciência a que esse conceito se liga.

4º procurar etapas anteriores desse conceito.

5º sistematizar as etapas e comparar todas as incidências escolhidas.

6º estabelecer os métodos que interferiram no conceito.

7º retirar essas rupturas do conceito.

8º apresentar a continuidade.

 

      1. As etapas do trabalho historiográfico-linguístico quando o objeto for um indivíduo/autor/obra completa:

1º estabelecer uma biografia básica, vinculada à área temática pesquisada.

2º estabelecer os conceitos básicos produzidos, numa síntese precisa.

3º vincular os fatos da vida pessoal e científica/acadêmica e conceitos às instituições e às pessoas a ele relacionadas.

4º verificar fontes preceptoras e fontes escritas.

5º mapear os conceitos das fontes.

6º descrever os métodos ou o método.

7º vincular o método às ciências com suas respectivas fontes.

8º verificar o traço diferenciador do método do autor.

9º mostrar a contribuição de seu método para os conceitos.

10º relatar os avanços da obra.

 

Referências

Milani, Sebastião Elias. https://1drv.ms/f/s!AnWxoHbWsEVY7hEskX6UuZ1gP3mH

Milani, Sebastião Elias. https://fliphtml5.com/wskm/urjs/basic